As relações sociais estão passando por uma transformação inimaginável, em tão pouco tempo e de maneira tão forçada, como decorrência da pandemia causada pelo covid-19. No Brasil, desde 26 de fevereiro deste ano, data de confirmação do primeiro caso, ainda que devagar, as empresas passaram a adotar medidas para amenizar os impactos gerados pela crise. Ademais, ela impactou a economia e tem causado questionamentos jurídicos sobre os contratos até então estabelecidos, instrumentos estes fundamentais para o funcionamento da estrutura social vigente. Com isso, os Tribunais vêm sendo questionados por demandas que pleiteiam, genericamente, a revisão de contextos contratados, sob argumento de que a pandemia tem gerado prejuízos excessivos a uma das partes e vantagens extremas à outra, nos termos dos artigos 317, 393, 478, 479 e 480 do Código Civil.
Ainda que estejamos passando por um momento extremamente difícil, e disso temos plena convicção, é preciso ter muita cautela na análise e interpretação da legislação e da jurisprudência relativas aos negócios jurídicos e, não menos importante, das cláusulas contratuais dos instrumentos levados ao Judiciário. Apenas retomando, não queremos aqui questionar o que de fato é assaz sensível: o covid-19 tem, sim, devastado a humanidade. Para se ter uma ideia, segundo informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), até o final de julho de 2020 foram fechadas permanentemente mais de 716 mil empresas. E isto é gravíssimo! Entretanto, não é exatamente sobre isso que estamos a questionar. Pensamos, isto sim, em que consiste, verdadeiramente, o contrato e seu arcabouço legal, tal como concebido na atual ordem jurídica brasileira, frente a situações de crises extremamente imprevisíveis.
Em um ambiente globalizado e dinâmico, onde os contratos são celebrados das mais diversas formas, a legislação precisa acompanhar as mudanças, para que possa socorrê-las, caso necessitem. No cenário atual, o Código Civil brasileiro, acompanhado pela jurisprudência e a partir da Constituição, institui princípios norteadores das relações contratuais, tais como o consensualismo, fundamento para a liberdade de contratar, a força obrigatória dos contratos, consubstanciada na fórmula de que o contrato faz leis entre as partes, a função social do contrato, cumpridor da circulação de riquezas e geração de empregos, a equivalência material das partes e a boa-fé objetiva, aspecto basilar da conduta leal e respeitosa do contratantes. Esses princípios, instituidores de regras previstas na codificação civil, devem ser cumpridos, mas também lidos com cautela, especialmente porque as partes encontram-se na mesma situação de incerteza. Em outras palavras, é extremamente nebulosa a visão de qual das partes está, na realidade, em prejuízo excessivo, e qual está em vantagem extrema. É claro que a prova, nesse momento, é de fundamental importância, porém, ao que parece, há uma mera alegação de suposto prejuízo, sem que este tenha sido cabalmente comprovado. Por conta disso, defender de plano a revisão dos contratos não parece ser a decisão mais aconselhada. É preciso cautela e cuidado.
Além disso, quando duas empresas se encontram em igualdade material, tudo aquilo que construíram contratualmente deve ser cumprido, ainda mais quando pautadas pelos princípios mencionados. No entanto, a partir do momento em que se questiona, no Poder Judiciário, o que até então era de interesse particular, sob o argumento da imprevisão, foge da inicial pretensão contratada, volta-se à estaca zero da relação negocial e transfere o problema para o Estado, que, de mais a mais, enche-se de demandas desnecessárias. Ao que tudo indica, inicialmente, todas as empresas, ou a sua maioria, têm sido prejudicadas, nem por isso podem deixar de cumprir com suas obrigações. Novamente, como feito no início da relação, devem buscar o consenso, principalmente porque, no atual cenário, repita-se, dificilmente há uma parte que esteja onerada excessivamente e outra, que esteja obtendo vantagem excessiva.
Nesse panorama de incertezas, dois horizontes parecem claros. Primeiro, os Tribunais deverão avaliar cada caso com suas particularidades, para não incorrer em decisões repetidas para casos não semelhantes. Segundo, os contratos necessitarão de análise e elaboração mais precisa e objetiva no que tange às situações que indiquem necessidade de revisão de seu conteúdo, especialmente frente a crises e eventos de extrema imprevisibilidade, com estruturação minuciosa de suas cláusulas, contribuindo, com isto, para a adequação das normas jurídicas frente às reais necessidades contratuais e sociais.
Da esq. para a direita: Eduardo Tambelini Brasileiro, sócio do escritório Guillon, Covelo e Brasileiro Advogados e Doutorando e Mestre em Direito Político e Econômico, e Pedro Vítor Melo Costa, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico
Foto: Divulgação