"[...] O que se dará é o seguinte: o radiotransporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório, em suma: trabalhará à distância". MONTEIRO LOBATO - O Presidente Negro. 1926, p.46.
Embora Monteiro Lobato tenha vislumbrado em 1926 o trabalho a partir da residência do trabalhador - o chamado Home Office - a sua origem data do século VI, no início da era cristã, quando os monges copistas trabalhavam nos chamados scriptoriums nos mosteiros onde residiam. Trabalhar em domicílio foi o modelo padrão mantido até o século XV, em que contadores, escrivães, notários e comerciantes trabalhavam dentro das suas próprias residências. Os primeiros bancos da história, como o Berenberg (1590) e Barings (1762), desenvolviam suas atividades diretamente nas residências das famílias fundadoras.
A prática do Home Office faz parte de um conceito mais abrangente chamado teletrabalho. O termo teletrabalho vem da palavra grega "telou", que significa "longe" unida à palavra latina "tripaliare", que significa "trabalhar". Chamado de telecommuting nos EUA ou telework na Europa, o teletrabalho é caracterizado pelo trabalho realizado fora dos escritórios tradicionais por meio da tecnologia. A sua prática foi intensificada após o boom tecnológico da década de 80 como alternativa ao método tradicional burocrático, que estabelecia que o trabalho deveria ser executado em períodos pré-definidos, em locais fixos e com constante monitoramento do trabalhador.
Talvez nunca na história mundial tenha se falado tanto de Home Office (HO). A pandemia do coronavírus obrigou as organizações a manterem suas operações a partir das residências dos funcionários em função da quarentena. Em 2018, a Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades (SOBRATT) avaliou mais de 300 organizações brasileiras e sinalizou que 45% delas praticavam HO e 15% estavam avaliando a sua implantação. A crescente adesão do HO e a necessidade de compreensão dos seus efeitos no trabalhador me incentivaram a liderar uma pesquisa acadêmica via web durante o período de novembro de 2019 a março de 2020 (antes do decreto de quarentena), com a vertente de entender o HO como prática laboral estabelecida dentro das organizações. Para viabilizar a análise, foram coletadas informações sobre:
Desconforto: frequência com a qual os respondentes sentem desconforto físico e psicológico;
Conflito trabalho e família: percepção do desequilíbrio entre vida familiar e trabalho, como interrupções, distrações, sentimento de negligenciamento da família e problemas em se desconectar da empresa;
Estigmas do HO: Direciona valores sociais negativos como sentimentos de transferência de custos da empresa para o funcionário, ameaças de trabalhadores estrangeiros, sentimento de esquecimento, falta de oportunidades de crescimento, exclusão social, falta de identidade organizacional e falta de preparo dos gestores para o gerenciamento remoto e por fim;
"Suporte ao HO": Direciona como a organização se posiciona em relação a despesas (energia elétrica, telefonia, internet), fornecimento de mobiliário e equipamentos, condições físicas e ergonômicas da residência dos funcionários e rotina familiar.
A pesquisa contou com a participação de 840 respondentes, sendo considerados para tratamento estatístico 374 respondentes com vínculo trabalhista CLT. Os respondentes que identificaram os seus Estados de residência estavam distribuídos em 22 Estados do Brasil, indicando uma boa abrangência nacional da pesquisa.
A quantidade de respondentes masculinos e femininos se apresentou bem equilibrada (49% Masculina / 51% Mulheres). Dos 374 respondentes, 42,2% nunca praticaram HO, 35,3% praticam HO (com diferentes intensidades) e 22,5%, apesar de não atuarem em HO no momento, já tinham adotado no passado. Em relação ao uso de antidepressivos e estabilizadores de humor, 14,7% da amostra faz uso regular em diferentes intensidades. Abaixo listamos as principais descobertas da pesquisa.
Horas trabalhadas, Nível de desconforto e a prática do HO: Não foi encontrada evidência empírica de que os trabalhadores que adotam HO trabalham mais horas ou ainda sentem maiores níveis de desconforto em relação aos trabalhadores que não praticam HO. Partimos da suposição de que trabalhadores HO trabalham mais para suplantar o fato de não estarem presencialmente no escritório e que também estão expostos a maiores índices de desconforto (físico e psicológico) em função dos maiores níveis de pressão, auto cobrança e dificuldade em harmonizar trabalho com a vida familiar. Apesar de entrevistas indicarem esses fatores emergentes, os dados estatísticos não comprovaram as suposições.
Uso de antidepressivos e intensidade de HO: Levantamos a suposição de que a adoção intensiva de HO aumenta o isolamento social e os conflitos entre trabalho e vida familiar, levando aos trabalhadores a um maior uso de antidepressivos e estabilizadores de humor. Foi comprovado pela pesquisa que o uso de antidepressivos se comporta como uma curva "U" (parábola com a concavidade virada apara cima), à medida que intensidade de HO aumenta. O ponto mínimo da curva em 2,8 dias por semana reduz ao máximo o uso de antidepressivos. A adoção abaixo e acima desse valor impacta no aumento de uso de antidepressivos. 3 dias seria então um "valor ótimo" que concilia os aspectos positivos e negativos da prática. Esta descoberta é um dos elementos mais relevantes da pesquisa. Além disso, a pesquisa demonstra que o comportamento em "U" do uso de antidepressivos é mais significativo entre os solteiros quando comparado aos casados e viúvos, o que acreditamos ser devido ao maior isolamento social das pessoas solteiras.
A intensidade de HO e conflito entre trabalho e vida familiar: Foi comprovado pela pesquisa que a intensidade de conflito entre trabalho e família está diretamente relacionado com a intensidade de HO adotada. Quanto maior a intensidade de HO, maior é o desequilíbrio entre trabalho e vida familiar.
Intensidade de HO e percepção dos aspectos negativos (Estigmas): Os dados mostram que, a partir de 3 dias de HO por semana, a percepção dos estigmas referentes ao HO de forma geral reduz, principalmente entre os pais de filhos menores de idade. Com o HO é possível que os pais passem mais tempo com seus filhos e, em conjunto com uma jornada flexível, possam participar mais intensamente na vida deles. A ideia de que as pessoas com filhos menores de 12 anos atrapalham quem trabalha em casa não foi corroborada.
Níveis de desconforto e flexibilidade de jornada: Um fator relevante é a adoção de práticas flexíveis de horários de trabalho. A adoção desta prática reduz significativamente o nível de desconforto e uso de antidepressivos. A flexibilidade permite principalmente harmonizar trabalho com a vida particular.
Grau de suporte das empresas aos trabalhadores HO: Outro item relevante apontado pela pesquisa é o grau de suporte das organizações à prática do HO. 29,6% das organizações fornecem recursos para o trabalho HO, 11,1% analisam níveis de ruído e iluminação, 13,4% avaliam se o espaço da casa do funcionário é adequado ou não, 21,3% fornecem ajuda financeira para as despesas de internet, telefonia e energia e 19,9% avaliam o impacto da rotina familiar no trabalho. Os dados corroboram o impacto positivo deste fator na redução dos índices de desconforto, conflito entre trabalho e família e percepção dos estigmas do HO. Adotar o HO não significa simplesmente liberar o funcionário para trabalhar na sua residência. A adoção da prática exige uma série de responsabilidades por parte da organização que são frequentemente negligenciadas.
Gênero e Estigmas do HO: Na pesquisa as variáveis dependentes "desconforto" e "uso de antidepressivos" estão relacionadas estatisticamente de forma significativa ao sexo feminino. Dentre os praticantes de HO (132), 58 são mulheres (44%). Apesar da maior exposição das mulheres à depressão por motivos biológicos, além da maior abertura a procurar ajuda profissional em casos de depressão, acreditamos que o estresse da dupla jornada feminina contribui para esse resultado.
Tempo de deslocamento casa/trabalho e percepção de desconforto: Para aqueles que não fazem HO, foi encontrada correlação a nível estatístico significativo (p-value<0.1) entre tempo de deslocamento casa-trabalho e desconforto psicológico (coeficiente de Pearson).
HO como prática social inclusiva: Não há dúvida de que trabalhar em casa é uma oportunidade de inclusão social, especialmente para pessoas com necessidades especiais relacionadas a limitações de deslocamento. Dos 374 respondentes, 9 eram portadores de necessidades especiais (2,4%) e apenas 1 deles praticava HO. Os dados indicam que pessoas portadoras de restrições severas de mobilidade, como cadeirantes, cegueira total e surdez, que precisam da prática do HO como solução para a inclusão social, continuam sendo excluídas. Pesquisas futuras são necessárias para analisar esse aspecto mais profundamente.
Vale ressaltar que os dados acima são referentes aos praticantes rotineiros de HO antes do isolamento social. Fazer a pesquisa em tempos de quarentena iria distorcer os resultados, uma vez que muitos trabalhadores passaram a adotar a prática por força maior, sem contar com a preparação adequada ou ainda conciliando as atividades laborais com os filhos em casa em função da suspensão das aulas escolares. Daí termos suspendido a pesquisa logo na primeira semana de março de 2020.
O Home Office trouxe consigo uma solução cômoda para as organizações reduzirem os custos de locação dos espaços. Ao mesmo tempo que o HO permite a inclusão social dos portadores de necessidades especiais, ele pode trazer também a precarização das relações trabalhistas. É importante que a estrutura da moradia do trabalhador e a sua rotina familiar sejam levadas em consideração pelas organizações e que estas estabeleçam rotinas que evitem o isolamento social. O desejo do trabalhador sobre a adoção ou não do HO deve ser levado em consideração. As organizações não podem negligenciar aspectos ergonômicos básicos como mobiliário, conforto térmico, luminosidade, níveis de ruído e rotina familiar dentro da residência dos teletrabalhadores.
Procuramos expor neste artigo os fatores que devem ser levados em consideração para a adoção do HO e em qual medida eles devem ser aplicados. Não vamos nos deixar iludir somente pelos aspectos positivos sem ponderar os efeitos negativos do teletrabalho. Acreditamos que os dados deste artigo possam ajudar aos Facilities Managers a desbravar esse futuro ainda desconhecido pós-pandemia onde certamente passaremos a enxergar o espaço de trabalho de forma diferente. Sentimos agora mais do que nunca que, mesmo que a tecnologia nos permita trabalhar onde e quando quisermos, é fundamental nos mantemos conectados como seres humanos. Acredito na abordagem construtivista em que o mundo social se forma à medida que as pessoas o discutem, o escrevem e o contestam. No fim, as boas ideias são aquelas que se comprometem com a construção de práticas sociais justas. Saúde a todos!
Alex Ferreira Gonçalves, Me., PMP, ACP, CBCP, é Mestre e Doutorando em Administração pela UNIGRANRIO, Engenheiro Eletricista especialista em Telecomunicações, Gestão de Projetos e também em Prevenção de Crises e Continuidade de Negócio. Atua como professor titular do MBA de Facilities Management da AVM desde 2014 e atualmente ocupa a posição de Diretor de Operações na Engepred
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