Por Raphael Alexandre Costa, sócio-diretor da Ativa Serviços Especializados

O setor de serviços deixou de ser coadjuvante na economia brasileira há muito tempo. Hoje, esse grupo responde por cerca de 70% do PIB nacional e concentra a maior parte dos empregos formais, segundo dados do IBGE. Diante dessa relevância, toda mudança estrutural na tributação do consumo, como a que está em curso, inevitavelmente repercute de forma direta e profunda sobre esse mercado.
A Reforma Tributária, considerada a maior transformação fiscal do país, já movimenta as empresas ao instituir a aplicação do modelo de Imposto sobre Valor Agregado (IVA). O dispositivo, que já é consolidado em diversos países, será composto pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de estados e municípios, e pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal. Dessa forma, os atuais tributos (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) serão extintos ao final da transição do novo sistema.
A estrutura proposta busca simplificar o sistema, reduzir a cumulatividade e aproximar o Brasil das melhores práticas internacionais de tributação sobre o consumo. Esse redesenho, porém, não distribui impactos de forma homogênea entre todos os segmentos. Setores mais intensivos em mão de obra e com menor volume de insumos creditáveis, como é o caso dos serviços e das operações de facilities, tendem a sentir primeiro e com maior intensidade os efeitos do novo IVA na formação de preços.
O mercado na mira do IVA
Dentro do universo econômico, empresas de limpeza, manutenção predial, segurança, gestão de utilidades, apoio administrativo e demais facilities formam um ecossistema que movimenta dezenas de bilhões de reais por ano e coloca o Brasil como líder desse mercado na América Latina. Estimativas divulgadas pela Associação Brasileira de Property, Workplace e Facility Management (ABRAFAC) indicam que o impacto econômico desse segmento gira em torno de R$ 50 a 60 bilhões e constatam taxas de crescimento acima de 4% ao ano.
A promessa da Reforma é conhecida. Simplificar, reduzir distorções e aproximar o país das melhores práticas internacionais de tributação.
Na prática, porém, o setor de serviços passa a estar na mira do IVA por uma razão simples: o novo sistema foi desenhado para ser plenamente não cumulativo, com forte ênfase na recuperação de créditos ao longo da cadeia. Isso favorece cadeias intensivas em insumos e bens tributados, como indústria e parte do varejo, e pressiona segmentos de serviços mais intensivos em mão de obra, com poucos insumos creditáveis, como no caso típico de facilities, limpeza e vigilância. Estudos e análises setoriais já indicam que, sem planejamento, a carga efetiva de muitos serviços pode subir, mesmo em um ambiente de alíquota uniforme e sistema mais transparente.
Atualmente, a soma das alíquotas para o setor de serviços gira em torno de 8,65%. No entanto, com a Reforma, projeções indicam que a alíquota padrão do novo IVA brasileiro deve ficar entre 26,5% e 28,6%, patamar que pode colocar o país entre aqueles com maior carga tributária sobre o consumo no mundo, especialmente se não houver uma gestão tributária eficiente.
Ao mesmo tempo, a regulamentação preserva vantagens para atividades consideradas essenciais, como saúde e educação, que terão alíquotas reduzidas em até 60% e regras específicas de crédito tributário. Isso cria um cenário em que parte do setor de serviços é protegida, enquanto outra, justamente a que presta apoio à infraestrutura e operação dos edifícios corporativos, shoppings, hospitais, condomínios e indústrias, pode enfrentar um choque de preços relativos. Para gestores de facilities e executivos de serviços, a mensagem é clara:
“O IVA não é um tema apenas de governo e contabilidade; ele redefine a competitividade de contratos que sustentam o funcionamento das atividades de boa parte da economia.”
Impactos da Reforma no setor de serviços
O novo modelo de tributação rompe com a lógica atual de múltiplos tributos em cascata, em que PIS/Cofins e ISS incidem de forma fragmentada e muitas vezes cumulativa, sem garantia de créditos integrais ao longo da cadeia. Com IBS e CBS, a finalidade é que cada etapa da prestação de serviços destaque, de forma explícita, o imposto incidente, com crédito amplo nas etapas seguintes. Na teoria econômica, isso tende a reduzir distorções, coibir a guerra fiscal e permitir que decisões e negociações sejam guiadas por eficiência e qualidade, e não por brechas tributárias.
Porém, para muitas empresas de serviços, o ponto de partida é delicado. Hoje, grande parte das prestadoras de facilities e serviços terceirizados operam em um regime em que a folha de pagamento representa de 60% a 80% dos custos, com poucos insumos materialmente tributados. Na migração para o IVA, a alíquota padrão tende a ser mais elevada, enquanto o espaço para tomada de créditos permanece limitado se a empresa não mapear cuidadosamente as despesas elegíveis, como energia, aluguéis, serviços tomados de terceiros e investimentos em tecnologia.
Outra questão sensível está no fluxo de caixa e no relacionamento com o cliente. A Lei Complementar que fundamentou a Reforma Tributária introduz mecanismos como o Split Payment — dispositivo de pagamento no qual o valor de uma transação é automaticamente dividido entre o vendedor e as autoridades fiscais no momento em que ocorre o pagamento. Isso significa que os prestadores de serviços precisarão revisar cláusulas de precificação, índices de reajuste, repasse de tributos e até alocação de riscos em contratos de longo prazo.
Há ainda um desdobramento estratégico sobre a interação com o Simples Nacional. Muitas empresas de serviços e facilities optam por esse regime para simplificar o dia a dia, mesmo em faixas de faturamento mais altas. Com o novo sistema, parte dos tomadores poderá preferir fornecedores fora do Simples, justamente para aproveitar créditos de IBS/CBS e reduzir o custo total da cadeia.
O resultado é um ponto de inflexão para as empresas:
Permanecer no Simples e competir por preço em contratos em que o crédito não é relevante
VERSUS
Migrar para outro regime, ganhar relevância na cadeia de créditos e assumir uma agenda mais robusta de governança tributária.
Por outro lado, o setor também captura benefícios com a nova realidade. A maior transparência na formação de preços facilita a comparação entre terceirizar ou internalizar atividades; a padronização das regras entre estados e municípios reduz a fragmentação típica de operações com múltiplas filiais; e a digitalização acelerada das obrigações acessórias cria um terreno mais favorável à automação e ao uso intensivo de dados, permitindo que empresas bem estruturadas reduzam custos administrativos e a incidência de litígios. Em um ambiente mais competitivo, qualquer ponto percentual de eficiência tributária pode ser a diferença entre um contrato sustentável e uma operação constantemente pressionada pela margem.
Aproveitamento de créditos tributários
Se o IVA é frequentemente apresentado como “o fim do imposto em cascata”, o coração dessa promessa está no aproveitamento de créditos tributários. Em linhas gerais, o novo modelo permite que empresas se creditem dos IBS e CBS pagos em praticamente todas as aquisições ligadas à atividade econômica, respeitadas algumas exceções. Para um setor acostumado a conviver com glosas de créditos, restrições de base e interpretações divergentes, isso passa a exigir uma gestão fiscal mais técnica e estruturada.
No universo de serviços e facilities, o desafio começa pela estrutura de custos. Em empresas fortemente intensivas em mão de obra, a parcela que efetivamente gera crédito é, à primeira vista, menor do que em uma indústria ou varejo físico. Ainda assim, as despesas naturais da operação tendem a se tornar fontes relevantes de crédito ao longo do tempo, desde que devidamente documentadas e classificadas.
A legislação da Reforma também abre espaço para uma gestão mais ativa desses créditos. A LC 214/2025 prevê hipóteses de ressarcimento e até de transferência de saldos acumulados, além de integrar esse mecanismo ao próprio fluxo financeiro via Split Payment. Em termos práticos, isso significa que uma empresa de serviços que presta para grandes tomadores em diferentes estados pode deixar de carregar créditos inutilizados na contabilidade e passar a tratá-los como um ativo, com impacto direto no caixa e na competitividade de propostas comerciais.
A comparação com outros setores é didática. Indústrias de maior porte já operam, há anos, com dedicação à apuração de créditos, revisão de códigos fiscais e uso de tecnologia para leitura massiva de notas fiscais eletrônicas. Enquanto isso, no setor de serviços, essa cultura ainda se mostra distante em muitas organizações, especialmente de médio porte.
Nesse cenário, a vantagem competitiva migra para quem conseguir, mais rápido, construir uma base de dados confiável, revisar cadastros de fornecedores, parametrizar corretamente CFOP, NCM e CST, e usar ferramentas de análise para identificar créditos subaproveitados.
Para facilities e empresas de serviços recorrentes, a resposta é nítida: a disputa não será apenas por preço, mas por inteligência tributária incorporada ao modelo de negócio.
Você sabe quais oportunidades a sua empresa está deixando passar?
A transição para o novo sistema não acontece de um dia para o outro. A partir de 2026, o país entra em uma fase de convivência entre o modelo antigo e o novo IVA Dual, com alíquotas crescentes de IBS e CBS e, em paralelo, decadência gradual de ICMS, ISS, PIS e Cofins até 2033, quando o novo sistema estará em plena aplicação. Esse período de sobreposição é, ao mesmo tempo, a maior fonte de incerteza e a maior janela de oportunidade para empresas de serviços. Quem enxerga a Reforma apenas como mais um custo inevitável tende a reagir sempre depois; já quem a tratar como um projeto estratégico de médio prazo pode redefinir posição no mercado.
Do ponto de vista de facilities e serviços terceirizados, algumas oportunidades aparecem com nitidez. A primeira está na revisão profunda da política de preços e contratos, o que envolve entender como o novo IVA incide em cada tipo de serviço, simular cenários de repasse, testar modelos com e sem destaque explícito de tributos e, sobretudo, negociar cláusulas que tratam de reajustes automáticos, tributos supervenientes e reequilíbrio econômico-financeiro. Muitos contratos de longo prazo firmados hoje, sem essa visão, podem se tornar inviáveis em poucos anos.
A segunda oportunidade está na reorganização da cadeia de fornecimento. Considerando a realidade de um sistema em que o crédito passa a ser peça central, a escolha de parceiros deixa de ser apenas uma decisão de custo direto. Negócios que conseguem se posicionar como fornecedores que geram crédito de qualidade para seus clientes tendem a ser selecionados em processos de concorrência, especialmente por grandes tomadores com presença nacional.
O setor de serviços vem de uma sequência de anos de crescimento moderado, mas consistente, com expansão em torno de 3% ao ano, mesmo em um cenário macroeconômico desafiador. Já o mercado de facilities cresce em ritmo ainda mais acelerado, com projeções de expansão anual acima de 4% e consolidação de players especializados em gestão integrada. Em um ambiente assim, a diferença entre quem lidera e quem fica pra trás não será apenas quem presta mais serviços, mas quem lê melhor o novo tabuleiro tributário.
No jogo da Reforma Tributária, quem começa a se mover antes está, de fato, alguns anos à frente.