Você já parou para pensar que a forma como as cidades foram planejadas e construídas (ou reconstruídas) ao longo da história sempre teve uma certa relação com as grandes crises? Planejamento urbano envolve muitos outros fatores, é claro, que incluem desde economia até as tendências culturais. Mas quando voltamos no tempo, vemos que os efeitos das crises de saúde pública nos espaços urbanos estão sempre presentes, e em alguns casos são radicais. Tomemos como exemplo a epidemia de cólera no século XIX, que forçou a introdução de sistemas de saneamento mais modernos - como medida preventiva às doenças - e só esse fato, podemos dizer, mudou tudo.
Agora, acredito, não será diferente. O novo coronavírus também exige e exigirá muitas mudanças, sobretudo no que diz respeito à maneira como nos deslocamos e utilizamos os ambientes públicos. Com isso, fica cada vez mais evidente a necessidade de repensar os espaços urbanos para a fase pós-pandemia, que exigirá mais cuidado em relação à higiene e controle de doenças. Assim, o replanejamento urbano ganha força em todo o mundo, para reestruturar e adaptar as cidades às novas condições. E nesse ponto, a tecnologia avançada hoje disponível contribuirá significativamente para reestruturações mais ágeis, assertivas e acessíveis.
Nos últimos anos, o gerenciamento digital de dados transformou a maneira como se projetam as áreas por onde andamos nas cidades. Para quem não é do setor de engenharia e construção ou áreas correlatas, isso pode parecer meio distante ou até invisível. Mas a inovação já está aí, nos ajudando a projetar avenidas, simular e organizar o trânsito, planejar a ampliação do transporte público, apenas dando alguns exemplos. Hoje, graças ao desenvolvimento de ferramentas que comportam a tecnologia 3D, com captura de imagens e geração de uma 'nuvem de pontos' estruturada, é possível projetar e desenvolver estruturas urbanas usando ferramentas complexas de simulação, suportadas pela inteligência artificial.
Apesar de estarem no mercado há cerca de 10 anos, softwares de microssimulação, que são a principal tecnologia para fazer esse tipo de trabalho, ainda são pouco utilizados. No entanto, com a nova demanda por replanejamento, há uma oportunidade gigante de ampliar sua utilização e aplicação. Só para vocês entenderem a engrenagem: eles funcionam como uma base de dados, que recebe e armazena uma grande quantidade de informações e disponibiliza a visualização delas de maneira eficaz, criando modelos virtuais em 3D para simular situações. Com isso, permitem reproduzir o comportamento individual de pessoas ou de veículos dentro de uma rede viária, por exemplo, testando impactos relacionados a alterações no fluxo de tráfego, mudanças no ambiente físico, alterações climáticas, e até impacto ambiental.
Em São Paulo, testes já estão sendo realizados em estações de trem, usando essas tecnologias para dar suporte às operações, neste momento em que é preciso evitar aglomerações nas estações e nos vagões. Com o software Infraworks, por exemplo, é possível simular e analisar o fluxo de pessoas e formação de filas, e a partir daí projetar o layout mais eficiente, com o menor tempo de espera e de parada dos trens nas plataformas, assim como medir o tempo das viagens, adotando a solução mais eficaz aos usuários.
Tenho observado que o trabalho de replanejamento já é uma realidade em cidades europeias que estão um pouco à nossa frente em relação ao retorno das atividades após as medidas restritivas de confinamento. Por lá, o ciclismo tem sido considerado a forma mais segura de locomoção pois ajuda a evitar a aglomeração. Milão, na Itália, anunciou um plano de extensão de sua rede cicloviária para os próximos anos e a implantação de 35 Km de ruas, para atender melhor tanto ciclistas quanto pedestres, além de ampliar calçadas. Da mesma forma, Roma deve reduzir os espaços destinados aos carros, ampliando as ciclovias em 150 Km (!).
Em resumo: integradas a ferramentas de desenho e modelagem, tanto a captura digital de imagens quanto a capacidade de simulação de cenários diversos e seus impactos permitem importantes tomadas de decisão em projetos. Decisões essas que maximizam a eficiência de variáveis que são chave no planejamento urbano, como o tráfego de pessoas e de modais - do transporte público aos carros particulares -, além de permitir maior assertividade em obras destinadas a facilitar a micromobilidade. Num tempo em que bicicletas e patinetes são uma tendência cada vez mais forte, isso tem impacto direto na qualidade de vida de uma população.
Por tudo isso, são essas inovações que ajudarão a preparar melhor as cidades para a etapa de retomada da atividade econômica, com segurança, transparência e o uso mais responsável de recursos públicos. Como sempre, a tecnologia é uma grande aliada do progresso, permitindo avanços em áreas tradicionalmente ineficientes, como a construção civil, além de incentivar a qualificação dos trabalhadores e abrir novas alternativas de formação. Cabe a nós encarar essa fase tão desafiadora também como oportunidade indutora de inovação, que pode ter sim como legado um salto de qualidade na forma como vivemos.
Sylvio Mode, presidente da Autodesk Brasil
Foto: Divulgação