Por Cristiana Fortini e Rafael Sérgio de Oliveira*
No último dia 10/7, foi publicada a Lei nº 14.011/2020, resultado da conversão Medida Provisória - MP nº 915/2019. Seu objetivo central é aprimorar os procedimentos de gestão e alienação dos imóveis da União, alterando diversas leis, entre as quais e de forma mais impactante, a Lei nº 9.636/1998, bem como trazendo dispositivos próprios e com forte repercussão no trato do patrimônio imobiliário federal, estadual, distrital e municipal.
Não são raras as notícias de imóveis públicos, geradores de despesas, desprovidos de finalidade e/ou abandonados, o que eleva a probabilidade de que estejam a descumprir o princípio constitucional da função social, comando constitucional que também alcança a propriedade pública.
A exposição de motivos da MP nº 915/2019 reconhecia a existência de um "conjunto importante de imóveis em risco iminente de colapso, colocando em risco a vida de pessoas, a destruição do meio ambiente e a perda do patrimônio público", indicando, a título de exemplo, o Edifício Wilton Paes de Almeida, que colapsou em maio de 2018.
A MP nº 915/2019 e agora a Lei nº 14.011/2020 oferecem, nem sempre de forma original, ferramentas que o gestor poderá utilizar sem impor a alienação como saída única aos problemas vivenciados. Ao contrário, a melhoria da gestão dos bens públicos, especialmente por meio do contrato de facilities, de que trata o art. 7 º da Lei, poderá desincentivar a opção pela transferência patrimonial.
Entende-se que a Lei nº 14.011/2019 trouxe em seu art. 7º um significativo avanço. Esse dispositivo trata do que a Lei denominou de "contrato de gestão para ocupação de imóveis públicos". Inicialmente, cabe dizer que essa espécie de contrato não faz parte da categoria "contrato de gestão", previsto no art. 51, II, da Lei nº 9.649/1998 (Agências Executivas) e na Lei nº 9.637/1998 (Organizações Sociais). Trata-se de instituto totalmente diverso.
A definição dessa espécie de contrato é posta no § 1º do art. 7º da Lei nº 14.011/2020, que o aponta como um único contrato no qual são reunidos os diversos serviços necessários para o gerenciamento, uso e manutenção dos imóveis onde funcionam as repartições públicas. Ou seja, é o conhecido modelo de contrato de facilities. O "contrato de gestão para ocupação" é um contrato administrativo, nos termos do art. 54 e seguintes da Lei nº 8.666/1993, cujo objeto preponderante são serviços como os de limpeza, recepcionista, copeiragem, vigilância, brigadista, manutenção predial e outros.
Essa espécie de contrato já é bastante difundida na iniciativa privada e vem ganhando espaço no setor público. No âmbito do próprio Tribunal de Contas da União - TCU, já havia o Acórdão nº 1214/2013 - Plenário, que expressamente admitia a reunião de diversos serviços necessários para o funcionamento dos órgãos e entidades públicas em um único contrato.
Acontece, entretanto, que esse modelo admitido no emblemático Acórdão nº 1214/2013 ainda era um tanto quanto tímido, pois não transferia para a empresa contratada o gerenciamento desses serviços, assim como não compreendia que a prestação desses serviços deve estar integrada com a gestão do imóvel no qual funciona a unidade da Administração Pública. Esse modelo mais avançado de contratação de facilities, conhecido como falicities management, foi admitido pelo TCU nos Acórdãos nº 929/2017 - Plenário e 10264/2018 - 2ª Câmara.
Ainda assim, entendemos que o legislador andou bem ao prever tal instituto na legislação. Embora haja algumas críticas à redação do art. 7º da Lei nº 14.011/2020, deve-se destacar sua relevância por dois aspectos positivos: a) a cristalização no ordenamento jurídico da possibilidade de contratação do modelo acima indicado; b) e o aprimoramento do modelo pela admissão legal expressa de inclusão de equipamentos, materiais e obras no escopo do contrato.
Quanto à possibilidade jurídica de contratação nos moldes indicados no art. 7º, § 1º, da Lei nº 14.011/2020, é importante notar que a reunião de serviços em um único contrato é sempre controversa no ordenamento jurídico pátrio em razão da regra do parcelamento do objeto, prevista no art. 23, § 1º, da Lei nº 8.666/1993. Nesse aspecto, andou muito bem a norma ao consolidar tal possiblidade na legislação. Porém, na linha do que orienta o TCU nos Acórdãos retromencionados, deve sempre o gestor fazer uma profunda análise de mercado e, se constatada a deficiência das empresas de isoladamente atenderem a demanda, admitir no edital a presença de consócios e/ou de subcontratação, com limites claros para tanto.
De outra banda, entendemos que a interpretação literal do dispositivo pode gerar algumas restrições na aplicação do instituto, diminuindo os seus potenciais ganhos para a Administração Pública brasileira.
Nesse ponto, em nossa leitura, não cabe restringir a aplicação do art. 7º aos órgãos e entidades federais. A única linha de argumentação que poderia indicar essa interpretação é a que se apega à ementa da Lei nº 14.011/2020, cujo conteúdo enuncia que o diploma se refere ao aprimoramento dos procedimentos de gestão e alienação dos imóveis da União.
Ora, a prevalecer tal hermenêutica, o art. 7º em estudo sequer seria aplicado às autarquias e fundações públicas federais. O fato é que, considerando o teor do seu caput e dos seus parágrafos, o dispositivo em comento é uma verdadeira "norma geral", no sentido do art. 22, XXVII, da Constituição, motivo pelo qual é dotado de caráter nacional e aplicável às esferas federal, estadual, distrital e municipal. Notemos que a norma trata de reunião de serviços, bens e até de obras em um único contrato, assim como também de vigência contratual (art. 7º, § 2º, II), aspectos sensíveis ao sistema de contratação pública brasileiro como um todo e, por isso, típicos de lei nacional.
Outra possível interpretação restritiva descabida seria a de que o modelo de contratação de facilities management, ou de gestão da ocupação, não seria aplicável aos imóveis ocupados pela Administração Pública na qualidade de locatária. Essa restrição até teria guarida se considerarmos o texto do caput do art. 7º, que se refere ao "contrato de gestão para ocupação de imóveis públicos", o que não abrangeria os imóveis privados ocupados pelo Poder Público a título de locação.
Por outro lado, essa leitura restritiva não se coaduna com os potenciais ganhos de eficiência trazidos pelo instituto para a Administração Pública, que por diversas vezes atua se valendo de imóveis privados. Não há razão para vedar a contratação de gestão da ocupação nos termos do § 1º do art. 7º da Lei nº 14.011/2020 nas ocasiões em que a Administração Pública funciona em imóvel locado. Os ganhos trazidos pelo modelo nesses casos serão os mesmos oferecidos no caso de funcionamento em imóvel público. O que é inaplicável para o caso dos imóveis locados é a hipótese do § 2º do mesmo art. 7º, que admite a inclusão de obras no objeto do contrato. Isso porque, a princípio, seria irrazoável o Poder Público pagar por obras a serem realizadas em imóveis particulares.
Desse modo, o ideal seria que o caput do art. 7º não tivesse restringido o conceito do instituto aos imóveis públicos. Porém, ainda assim, não encontramos óbices à sua interpretação mais ampla, abarcando também os casos em que a Administração funcione em prédios locados. Nesse aspecto, cabe registrar que mesmo antes da Lei nº 14.011/2020 o TCU já admitia a contratação nos moldes de facilities, sem a restringir a imóveis públicos.
Em relação ao aprimoramento dos processos de gestão dos imóveis públicos, enxergamos que o avanço trazido pelo art. 7º em estudo é imenso. Como já destacado, a possiblidade de reunir em um único contrato os serviços, materiais, equipamentos e obras necessários para o gerenciamento, uso e manutenção do imóvel parte do pressuposto da necessidade de integração entre pessoal, processos, equipamentos, tecnologia e edificação.
Além disso, ao entregar ao contratado a gestão dos serviços, bem como parte considerável do gerenciamento do imóvel, a Administração se concentra na sua atividade fim, buscando uma melhor entrega ao cidadão. Isto é, o Poder Público reconhece que, em dada medida, quem melhor sabe gerir espaço e gerenciar serviços essenciais para o funcionamento do prédio é a empresa terceirizada especializada em tal atividade. Entretanto, é preciso constatar a medida ideal dessa delegação ao terceirizado, pois muitos dos aspectos relativos à gestão e operação do imóvel estão conexos com o core business do órgão ou entidade. Essas questões deverão ser sempre muito bem enfrentadas no planejamento da contratação e expressas nos instrumentos que seguem anexo ao edital.
Não resta dúvida que o § 2º do art. 7º trará significativo impacto nas decisões referentes à gestão do patrimônio imobiliário do Poder Público, inclusive no que diz respeito à conveniência da alienação de certos prédios. É sabido que o mau emprego (e até abandono) de algumas edificações públicas, muitas vezes, decorrem de um problema orçamentário. Isto é, ante a falta de recursos orçamentários para reformar os imóveis de sua propriedade, a Administração Pública opta por abandonar tais prédios e passar a funcionar em imóveis locados. Com isso, a solução para o imóvel de propriedade do Estado acaba sendo a alienação.
O § 2º do art. 7º da Lei nº 14.011/2020 autoriza a inclusão de obra no contrato de gestão da ocupação (inciso I), com a inserção do valor da obra diluído nas parcelas mensais a serem pagas durante a vigência do contrato, que poderá durar até 20 anos (inciso II), a depender do nível de investimento inicial exigido do contratado.
Enfim, todo esse modelo exige um elevado grau de qualificação dos agentes de contratação do Poder Público, assim como um profundo planejamento e gerenciamento dos riscos envolvidos na questão. Diversos serão os pontos que envolverão essas contratações, sobretudo no caso em que haja previsão de obras. Esse é um modelo a ser construído. Não há dúvidas que a Administração Pública brasileira é capaz. Só depende de esforço e sintonia entre Administração, mercado e controle.
*Cristiana Fortini é Professora da UFMG e Milton Campos. Doutora pela UFMG. Professora Visitante da Universidade de Pisa. Visiting Scholar na George Washington. Vice-presidente do IBDA. Rafael Sérgio de Oliveira é Procurador Federal da AGU. Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas. Mestre em Direito. Pós-Graduado em Direito da Contratação Pública pela Universidade de Lisboa. Participou do Programa Erasmus+ na Università degli Studi di Roma. Fundador do Portal L&C. Palestrante e Professor em diversos cursos de pós-graduação no Brasil. Co-autor, juntamente com Prof. Victor Amorim, do livro Pregão Eletrônico: Comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019, publicado pela Editora Fórum, 2020.
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